Frederico Hayek e o “positivismo”.

O vídeo “A farsa positivista”, de Aldo Pereira, é peça de desinformação, eivado de simplificações e de distorções; ele não expõe o que seja o positivismo nem qual foi sua herança no Brasil; bastante superficial, não transmite nenhuma imagem real do Positivismo, sequer uma sua distorção, no que se chama falácia do espantalho: tranmite qualquer cousa, menos o que seja o Positivismo.

Esse vídeo erra ao atribuir ao Positivismo origem no iluminismo, como germano do socialismo: o Positivismo não é produto do iluminismo (embora seja-lhe posterior), não se inspira precípua nem principalmente em seu ideário: como método cognitivo, ele remonta à antigüidade grega e vem se desenvolvendo à medida mesmo que a humanidade acumula conhecimentos sobre os fenômenos da natureza (nele compreendidos os humanos) e incrementa sua capacidade interventora nela; o espírito positivo não é refeitura do espírito iluminista, e confundir um com o outro demonstra o primarismo de quem assim o pensa.

A visão antagônica ao Positivismo de Frederico Hayek, que o vídeo menciona e em que se inspira, corresponde a certo modo de distorcê-lo. Há o Positivismo que o vídeo chama difuso e que chamo espírito positivo, isto é, a interpretação da realidade como constituindo-se de diversos fenômenos irredutíveis uns aos outros e todos regidos por leis naturais, que ensejam ao homem conhecer a realidade e planejar ações; outra coisa, alheia ao Positivismo, é o que o vídeo lhe imputa: a criação do estado burocrático, a estatização e a socialização, que terá influenciado, segundo o vídeo, o escol dirigente dos países ocidentais, como se a política positivista houvesse granjeado a adesão de governantes e políticos em geral. Influência do Positivismo realmente houve, nos meios intelectualizados de seu tempo: professores universitários, figuras intelectualizadas, mulheres, pessoas comuns, também alguns políticos, aderiram-lhe à concepção de que, em lugar de nos regermos por critérios teológicos e ou imaginários, devemos nos reger pelo conhecimento positivo, isto é, fundado em factos, que nos permitam conceber e empreender ações coletivas. Tal é o sentido do aforisma “saber para prever a fim de prover”: é elementar que, na vida individual e na vida política, desejamos conhecer o estado de cousas em que nos encontramos, para prevermos os efeitos de nossas iniciativas e providenciarmos decisões que levem aos resultados que pretendemos. Qualquer pessoa em sua vida privada, qualquer governo, qualquer instituição dotada de um mínimo de racionalidade e de inteligência procede assim; somente neste sentido amplo e vago, se pode dizer que o Positivismo entranhou-se nos governos ocidentais em geral e que “não possui rosto próprio” e é difícil de definir. É desejável que toda pessoa, todo governo, toda política, atue racionalmente com conhecimento de causa e previsão dos efeitos de suas decisões, sentido em que não se pode, a título nenhum, censurar nenhum governo por, nessas condições, “positivista”.

O vídeo não sabe reconhecer o que sejam espírito positivo (critério metodológico de conhecimento da realidade e de ação nela) nem Positivismo (doutrina presente nas obras de Augusto Comte); pensa saber o que “positivismo”, que na concepção de Frederico Hayek é nome de que ele, desastradamente, se valeu como bode expiatório para simbolizar seu inimigo intelectual.

É grossa tolice afirmar que o Positivismo “não tem rosto próprio”: ao revés, ele o tem, e perfeitamente reconhecível: encontra-se nas obras de Augusto Comte, nas de seus discípulos (como Laffitte, Miguel Lemos, Teixeira Mendes, Joaquim Bagueira Leal, Ivan Lins), na religião da Humanidade, em seu espírito republicano, em sua ética laica, em seu estímulo da fraternidade, na recusa da teologia. O que não tem “rosto próprio” é a coisa indefinida que Frederico Hayek chamou “positivismo”, por incompetência semântica, e que alguns macaqueiam, por incompetência intelectual.

Comete erro o vídeo ao qualificar a sociedade como ente metafísico, erro tão tosco que bastaria ele para desacreditar a qualidade intelectual do que antecede e do que sucede a essa parlapatice. Há outras incorreções, como a de que, segundo Comte, a ciência deve ser a bússola da humanidade: a ciência é o critério de conhecimento da realidade (e não mais a teologia nem a metafísica); graças a ela não imaginamos nossa realidade, porém averiguamo-la e com base em sua averiguação (não em sua imaginação) podemos nela intervir. A bússola da humanidade, para o Positivismo, não está na ciência, senão no espírito positivo e nos valores de liberdade e de fraternidade, que Comte amplamente desenvolveu em sua segunda obra, o Sistema de política positiva, que os liberais brasileiros precisam de ler, para pouparem-se de bostejar.

Chamar ao positivismo ideologia burguesa é apodo típico de marxistas, demonstração de que tanto a “direita” quanto a esquerda brasileiras interpretam-no mal; dizer que o positivismo sustentou a escola e o estado burocrático só pode ser tomado como encômio, na primeira parte: o Positivismo deseja que todos recebam instrução, quer em ciência, quer em conhecimentos gerais, com formação humanista que eleve a massa humana ao estado de civilização em que vivemos. Por outro lado, um mínimo de organização burocrática é indispensável em qualquer estado, em qualquer instituição que se pretenda eficiente, o que é distinto de estado altamente burocratizado, como o vídeo depreciativamente insinua.

Outra bobagem que revela o raso nível de informação do vídeo é a asserção de que Comte criou igreja em que “a razão seria entronizada”: não; ele criou a religião da Humanidade, em que tomou como dogma o da Humanidade; a entronização da razão foi obra do culto da Razão, sustentado por breve período, por Robespierre.

No Brasil, o Positivismo adentrou nos meios civis e militares, não principalmente nestes; um de seus próceres, Benjamin Constant, chefiou a insurreição de 15 de novembro; a influência imediata dos positivistas na organização da novel república deu-se pela separação entre igreja e estado, com a instituição da liberdade de crenças (e de descrença) e pela proposição à assembleia constituinte de1891 de dezenas de dispositivos consagradores das liberdades individuais.

A exposição histórica relativa a proclamação da república é, como tudo nesse vídeo, rasa e carente de melhores informações. Nada tem que ver com o positivismo a política de imigração italiana, no suposto intuito de branquear a povoação brasileira, o que contradiz diretamente o espírito Positivista de miscigenar os brasileiros brancos com negros e com indígenas. Aliás, um dos primeiros, senão o primeiro que no Brasil antagonizou certa pretendida superioridade branca e enalteceu o valor de negros e mulatos foi, não casualmente, o Positivista Roquette Pinto. Não passa de desinformação e até de calúnia asseverar que o positivismo colimava o desaparecimento da herança genética negra no Brasil, coisa que se esteve no espírito de alguns brasileiros, não o esteve no dos Positivistas.

O regime militar brasileiro nada teve de Positivismo verdadeiro nem nele se inspirou. Cientificismo, estatização, keynesianismo, aumento estatal, políticas intervencionistas, são políticas públicas determinadas por critérios próprios de governantes que assim os preferiram ou preferem, não são políticas inspiradas no Positivismo.

Na verdade, Frederico Hayek criou um espantalho, que chamou “positivismo”, símbolo indefinido, vago e genérico de políticas a que se opunha. Ele fomentou desinformação, ao associar o símbolo que nomeou “positivismo” com as doutrinas de Augusto Comte.

No Brasil, os neoconservadores, os olavinhos, os olavizados, a nova direita, os liberais em economia, os novos monárquicos, caracterizam-se por seu raso conhecimento do que seja o Positivismo; por sua crença, tola, de que Frederico Hayek referiu-se ao Positivismo ao verberar o “positivismo”; por sua crença, ignorante, de que o Positivismo é culpado pelo que eles julgam males. Os devotos de Hayek compõem nova geração de agentes da desinformação anti-Positivista e nova geração de papalvos em matéria de Positivismo.

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